Irredentos

ENTRE O CÉU E A TERRA

Jean-Luc Godard costuma dizer que a televisão fabrica o esquecimento. Já o cinema, argumenta, pode às vezes criar uma memória, um reflexo onde conseguimos nos ver representados.

Não é só o cinema que nos oferece essa possibilidade. Nunca me esquecerei do dia em que vi, pela primeira vez, as fotografias de Christian Cravo feitas no sertão nordestino. Estavam expostas no espaço Pierre Verger, em Salvador, e agora fazem parte deste belíssimo livro que é Irredentos.

Mãos pedindo aos céus aquilo que é negado na Terra. Rostos em transe.
O olhar de um cego, superposto ao de Padre Cícero. Chapéus de palha pousados sobre o rosto da Virgem Maria. Braços que erguem sofregamente um crucifixo. Dedos negros que acariciam o caixão de um parente.

Não há nessas imagens a visão apriorística de quem julga aquilo que enquadra. Não há cinismo. As fotos de Christian Cravo, ao contrário, partem do desejo de entender e retratar aquilo que vê. Esse pressuposto humanista faz com que a distância entre fotógrafo e objeto fotografado seja eliminada. Em conseqüência, aqui não há máscara ou representação. Apenas um daqueles raros momentos em que um povo é retratado de forma íntegra e solidária, sem manipulação ou paternalismo.

É a geografia física e sobretudo humana de todo um pedaço do Brasil que ganha aqui contorno. E, se a obra de Cravo é imbuída de um sentimento de compaixão, ela não é, por outro lado, miserabilista ou dogmática. As imagens, de uma profunda beleza, são secas, ásperas, quase minerais. À nossa frente há apenas a vida como ela é, sem adorno ou mise-en-scène.

Folheando o livro, percebe-se como é direta a relação entre religiosidade e necessidade. Irredentos retrata com ressonância poética e precisão cirúrgica aquilo que não queremos muitas vezes ver. A nossa incapacidade de resolver problemas estruturais, que se tornam crônicos, endêmicos.

Em 1964, Glauber Rocha escreveu um texto contundente e revelador sobre o sertão, onde nega a sentença de Euclides da Cunha: "O sertanejo não é, antes de tudo, um forte. (…) um servo da mais primitiva condição à sua resistência já é na própria morte, não é na vida".

As fotos de Christian Cravo nos levam a pensar que, talvez, tanto Euclides da Cunha quanto Glauber Rocha tivessem razão. Num quadro de total abandono, a sobrevivência já é em si um ato de coragem. A religião, por outro lado, aparece como a única tábua de salvação num mundo onde o Estado está secularmente ausente.

O imenso talento de Cravo, perceptível nos enquadramentos surpreendentes e na expressividade luminosa dos homens retratados, cria camadas adicionais de decodificação de um universo rico em contradições. O trabalho que o fotógrafo reúne em Irredentos tem uma qualidade universal e
transcendente. É, de certa forma, um milagre, mas não de caráter religioso, e sim aquele possibilitado pela ação do artista, que permite que nós possamos nos ver, subitamente, refletidos em corpos e rostos que nos pareciam tão distantes e que nos são, na verdade, surpreendentemente próximos.

Algumas palavras a mais sobre essas imagens que Christian Cravo nos oferece, a meio caminho entre o céu e a terra. Ao percorrê-las mais uma vez, lembro-me de uma frase do fotógrafo suíço-americano Robert Frank, sobre a utilização do preto-e-branco. Um dos pais da moderna fotografia documental, Frank diz que o preto-e-branco traz consigo, paradoxalmente, a esperança e a desesperança.

Não consigo pensar num trabalho de um jovem fotógrafo tão imbuído dessa aparente contradição. Em cada rosto que espera, em cada mão erguida para o céu, há doses iguais de sofrimento e esperança. Há, talvez, a impressão de que, por mais dura que seja a realidade, alguma transformação ainda seja possível.

É desse desejo de transformação e de transcendência espiritual que é também feito este livro.

Walter Salles

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